Onde buscamos sabedoria?

por Gustavo Gitti

onde buscamos sabedoria
A palestra de David Kwong no TED2014 é um exemplo maravilhoso da confusão entre sabedoria e mera habilidade dentro de um jogo | Foto: Thu-Huong Ha

A todo momento estamos buscando por sabedoria. Mesmo quando parece que estamos apenas checando o Instagram, nossos olhos desejam uma clareza profunda sobre a realidade, a vida, a morte, a mente, as relações, as causas do sofrimento e da felicidade, as angústias existenciais, os fenômenos inexplicáveis… enfim, sobre quem somos e onde estamos.

Onde estamos acostumados a procurar sabedoria?

Na família ou na amizade: parece que alguém que dedicou décadas a cuidar dos filhos, netos e amigos teria muito a dizer sobre a realidade. Amar e ser amado é a grande experiência. O sentido das coisas está ligado à nossa família a aos nossos amigos, no fim é isso o que importa.

No trabalho, no empreendedorismo, no lifehacking, na gestão: queremos ouvir quem encontrou seu propósito e sua autenticidade trabalhando com o que ama, quem conseguiu reprogramar seus hábitos para aumentar sua performance, fazer crescer suas startups, liderar sem hierarquia e ainda conseguir impacto social. O sentido da vida está em configurar avida, construir algo e “empreender a si mesmo”.

Na publicidade, no storytelling, na inovação criativa e “disruptiva”: alguém que sabe montar narrativa ou alguém que criou algo verdadeiramente novo deve ter alguma sabedoria. Estamos aqui para inovar e construir boas histórias — e o sentido da vida tem alguma relação com aquele comercial genial da Nike.

No niilismo: se a pessoa desistiu de tudo e não vê sentido em nada, vamos admitir que ela exala um tipo de sabedoria. O sentido da vida é repetir que as coisas são sem sentido e no fim das contas a gente deveria só tomar uma antes de dormir.

No dinheiro, no poder, na fama, no status, no sucesso, na superação: quem conseguiu vencer em algum jogo certamente conhece os meandros da vida. Estamos aqui para transformar a vida em jogos que podemos ganhar, mesmo que eles sejam bem sutis e quase imperceptíveis.

No romantismo e no hedonismo: se alguém cozinha, surfa, bebe vinho, fotografa, transa, viaja com tanta paixão e prazer, como um verdadeiro bon vivant, quase certo que manja das sutilezas do mundo. O sentido das coisas é simples: “life is good”, “carpe diem”.

Na crença religiosa ou no underground do misticismo: se a pessoa sabe explicar tudo aquilo que eu não sei explicar, se a pessoa sabe o que é certo e o que é errado, se a pessoa trabalha com realidades paralelas e estados alterados, ou se você descobre um guru que se diz iluminado, deve ter sabedoria aí. O sentido da vida está aqui nesse livro, toma.

Na ciência e na tecnologia: se a pessoa passou 20 anos estudando o funcionamento do buraco negro, se montou o primeiro robô que faz tal coisa, provavelmente sabe algo profundo sobre a realidade. O sentido da vida é alguma extrapolação forçada no último capítulo do livro, depois do cientista descrever suas hipóteses sobre fenômenos bem específicos que não implicam necessariamente naquele sentido da vida.

Na arte, na psicologia, na cultura e na filosofia: se a pessoa filma desse jeito, costura conceitos como ninguém, lê tão bem os outros, escreve com tamanha facilidade, tem tantas ideias, me faz chorar, pensar, rir, conectar tudo com tudo, isso certamente é sabedoria. O sentido da vida é essa criação constante de sentidos, usando todo o poder discursivo e imagético da mente e do corpo, recombinando cores, símbolos, sons, palavras, metalinguagens, intersubjetividades, memórias, histórias, dramas, emoções. Dessa perspectiva, quando vejo um vídeo sobre budismo, não me interessa a sabedoria apontada: o que eu desejo é poder integrar uma nova visão ao meu repertório intelectual (“Olha só como pensam os budistas! Que interessante esse conceito!”).

No design, no espetáculo, na estética, na cultura da inspiração e do oba-oba da transformação: parece bobo ou improvável, mas atualmente existe essa mente, sim, algo como “Nossa, com essa fonte, com essa foto, com essa frase espertinha, isso é realmente algo para se compartilhar!” ou “Hoje teremos talks com pessoas incríveis com carreiras e histórias inspiradoras, e isso basta para convencer vocês de que teremos alguma sabedoria, não é, pessoal?”. O sentido da vida está em algum poster motivacional—e você não se dará ao trabalho de checar se essa frase é mesmo de Sua Santidade o Dalai Lama, se tem ensinamentos mais profundos de onde vem essa frase, muito menos se há algum caminho para manifestar tal sabedoria em sua própria mente. Você escreve “Gratidão” no comentário e rebaixa um pouco mais os seus critérios para definir uma experiência como “transformadora”.

Não há problema algum nisso

Claro, todos esses processos nos ajudam a criar alguma intimidade com a vida, com os outros, conosco mesmos. Não há o que criticar ou apontar como um problema (“Não tem sabedoria nenhuma aí!” ou algo similar). É uma riqueza viver com tantas inteligências! O ponto não é mudar ou fazer algo diferente. Vamos seguir com família, trabalho, ciência, arte, filosofia… Maravilhoso.

Ao mesmo tempo, é bem interessante perceber um ponto em comum entre todos esses processos: todos implicam em uma sabedoria indireta, por meio do gerenciamento de conteúdos mentais, estímulos sensoriais, visões de mundo e condições externas.

Tanto é que mal conseguimos conceber algum tipo de lucidez que não seja uma espécie de conhecimento ou de habilidade. “Sabedoria” se torna uma palavra desnecessária ou apenas uma palavra que se refere a alguma acumulação de saberes, know-how, referências, competências, experiências passadas, conteúdo, bagagem.

Nossa cultura raramente considera a possibilidade de trabalhar diretamente com o mundo interno em algo que poderíamos chamar de “treinamento da mente” — a mente usando a mente para conhecer e transformar a mente (em primeira pessoa, não em segunda como na psicologia, não em terceira como na neurociência).

Tampouco parece existir a opção da liberdade: ou a gente se fixa aqui ou se agarra ali, não tem como sonhar com um olhar verdadeiramente flexível, aberto, sem fixações. Muito menos a possibilidade da realidade ser infinitamente mais extraordinária do que parece: no máximo, nos entretemos com um pouco de astronomia de vez em quando, e só.

Desse modo, se me pedirem para ficar sentado em silêncio, sem ler, falar, raciocinar, conversar, correr, trabalhar, fazer algo ou contar alguma história, eu não vou me interessar. Que sabedoria poderia vir daí? Não tem sabedoria aqui na minha mente apenas. Eu sinto que preciso me agarrar a algo, eu preciso argumentar, costurar, colocar algum conteúdo. Entre passar três anos viajando pelo mundo, três anos lendo e três anos em retiro fechado de meditação, eu não preciso nem pensar: tem mais sabedoria em leituras e andanças.

Agora, se há genuína sabedoria em alguma dessas fontes, por que nós continuarmos encontrando sofrimento e confusão? Será que as grandes mulheres e homens da humanidade não descobriram algo mais profundo?

Podemos desconfiar de que talvez exista um limite nessas abordagens convencionais. Talvez estejamos procurando por céu em algum lugar do chão (assim como não faz sentido esperar filosofia rigorosa de um adolescente explicando por que ganhou no futebol) — ainda mais se alguém ao redor mencionar a possibilidade de uma sabedoria mais direta e profunda. Desconfiados, seremos um pouco mais curiosos.

O resumo mais curto e direto que conheço para abrir essa possibilidade de sabedoria além das inteligências convencionais é esse:

“Do not investigate phenomena: investigate the mind. If you investigate the mind, you’ll know the one thing which resolves all. If you don’t investigate the mind, you can know everything but be forever stuck on one.”

“Não investigue os fenômenos: investigue a mente. Se você investigar a mente, saberá a única coisa que determina tudo. Se não investigar a mente, pode conhecer tudo mas estará sempre preso a uma coisa.” (em tradução livre)

—Padmasambhava (século XIII)

Pra começar a contextualizar tal trechinho de ensinamento, teríamos de ouvir um professor ou uma professora qualificada que realmente contemplou e praticou isso por algumas décadas. Depois de ouvir, naturalmente seríamos convidados a fazer o experimento por nós mesmos: praticar, colocar o método em ação. É essa também a diferença: a maioria das nossas apostas não implica em algum cultivo sutil interno, apenas em ações grosseiras (o “Just do it” nunca se aplica a trabalhar diretamente com mente, mas a fazer algo externamente). Mas, enfim, achei importante deixar um exemplo do que seria uma alternativa às nossas fontes usuais de sabedoria.

No último retiro aqui no Brasil, Alan Wallace usou uma imagem conhecida para mostrar o limite da abordagem fisicalista de procurar a mente no cerébro. Uma pessoa está passando na rua e observa um homem agachado ao redor de um poste de luz: “Você está procurando algo?”, “Perdi as chaves do carro”, “Você perdeu aí? Posso te ajudar!”, “Não, estou procurando aqui porque tem luz”.

Acho que a metáfora se aplica também a nossa busca por sabedoria.